António Costa preferiu dar prioridade ao ajuste de contas, assumindo o confronto com o Presidente da República e com a Procuradora-Geral da República. E, nalguns momentos, assumindo uma postura de Calimero: vitimizando-se e sentindo-se injustiçado
Ajuste de contas
Anteontem, o Primeiro-Ministro foi entrevistado por uma televisão portuguesa. E, sublinho, o Primeiro-Ministro. Não o líder do Partido Socialista ou o cidadão. Mas, se atentarmos ao que disse, afigura-se óbvio que falou mais nestas duas qualidades do que na primeira.
Tratando-se da primeira entrevista concedida após a aceitação formal da sua demissão, seria de esperar que aproveitasse o ensejo para se centrar na defesa do seu legado governativo. Muitos de nós (eu incluído) estaríamos, naturalmente, em discordância com o balanço que poderia ter feito, por certo laudatório. Mas ninguém poderia recusar-lhe esse direito.
Sucede, porém, que António Costa preferiu dar prioridade ao ajuste de contas, assumindo o confronto com o Presidente da República e com a Procuradora-Geral da República. E, nalguns momentos, assumindo uma postura de Calimero: vitimizando-se e sentindo-se injustiçado.
Mas vamos por partes. Para António Costa, o Presidente da República é culpado de um conjunto de erros graves – por, ao optar por eleições, em vez de aceitar nomear um novo Primeiro-Ministro por si sugerido, não ter garantido a estabilidade; por ter, assim, dado azo a uma crise política; por levar o País para um sufrágio que ninguém quer.
Objectivamente, todas essas críticas são infundadas e, mais do que isso, incompreensíveis.
Com efeito, Marcelo Rebelo de Sousa não tem qualquer responsabilidade na demissão do Primeiro-Ministro – foi António Costa que apresentou o pedido e, atentas as circunstâncias, não havia outro caminho que não fosse a sua aceitação.
Por outro lado, no contexto político vigente a nomeação de Mário Centeno (ou de qualquer outra personalidade da área socialista) como Primeiro-Ministro seria completamente descabida e insustentável.
De certa forma, a opção de Marcelo Rebelo de Sousa faz recordar aquilo que sucedeu em 1983, quando o Presidente Ramalho Eanes, na sequência da demissão de Pinto Balsemão, recusou o nome do Professor Vítor Crespo para Primeiro-Ministro, proposto por uma Aliança Democrática que dispunha de uma maioria parlamentar aritmética, mas politicamente esgotada.
Por fim, não é verdade que ninguém queira eleições. Desde logo, a generalidade da oposição foi favorável à sua realização. E, numa sondagem publicada logo a seguir ao anúncio da demissão de António Costa, cerca de dois terços dos inquiridos manifestaram a sua preferência por essa solução e apenas um quarto se revia na hipótese de dar posse a um novo chefe de Governo socialista.
A “lua de mel” em que Presidente da República e Primeiro-Ministro viveram bastante tempo deu lugar, progressivamente, a um crescente distanciamento, que culminou neste ataque directo. Mas, se olharmos para a nossa história recente, constatamos que isso é tudo menos novo. Pelo contrário: é uma tendência regular.
Em 1976, Ramalho Eanes foi eleito com o apoio expresso do PS, do PSD e do CDS. Em 1981, os dois últimos partidos apresentaram outro candidato – o General Soares Carneiro. Mário Soares suspendeu a sua actividade como Secretário-Geral do PS, em discordância com a posição do seu partido de estar ao lado da recandidatura de Eanes. E a desconfiança entre o então Presidente e Pinto Balsemão era tamanha, que as conversas a dois, no Palácio de Belém, passaram a ser gravadas…
No primeiro mandato de Mário Soares, a sua relação com Cavaco Silva foi tão construtiva que o PSD lhe deu o seu apoio em 1991. No segundo mandato, a conflitualidade entre ambos atingiu níveis elevadíssimos.
A partir de 2002, tudo parecia correr de feição entre Jorge Sampaio e Durão Barroso (pese embora algumas pontuais, e naturais, discordâncias). Em 2005, o Presidente da República, consciente de que não tinha fundamentos constitucionais para demitir Pedro Santana Lopes, optou por dissolver antecipadamente a Assembleia da República, onde PSD e CDS tinham maioria absoluta.
Nos primeiros tempos da presidência de Cavaco Silva, a “cooperação estratégica” (como este a designou) com José Sócrates foi notória e gerou um claro incómodo em muitos militantes social-democratas. Mais tarde, uma assumida acrimónia instalou-se entre os dois.
Haverá, por certo, motivos justificativos que, nalguns casos, se prendem com a personalidade dos intervenientes. Mas não existirão, igualmente, características do próprio sistema político-constitucional que favorecem a ocorrência desses desentendimentos (os quais atingem especial dimensão no segundo quinquénio presidencial) e que merecem adequada reflexão?
Mas, se António Costa esteve mal relativamente ao Presidente, pior ainda foi o modo como censurou a Procuradora-Geral da República.
Podemos criticar Lucília Gago pela forma como lidou, no plano mediático, com a questão do processo aberto no Supremo Tribunal de Justiça, visando o Primeiro-Ministro. Como se, nos dias de hoje, o Ministério Público pudesse estar encerrado numa espécie de “torre de marfim”, desvalorizando as consequências jurídicas, mas também políticas e sociais das suas acções. Mas já não o podemos fazer por cumprir a lei, que se aplica (melhor, tem de se aplicar) nos mesmíssimos termos a todos os cidadãos.
E foi precisamente por esse caminho errado que António Costa enveredou. Desvalorizando os deveres institucionais a que o lugar que (ainda) ocupa obrigam. Ignorando os efeitos negativos sobre a credibilidade da justiça que as suspeitas lançadas por um Primeiro-Ministro são aptas a gerar. Esquecendo que quem o colou na situação em que se encontra foram aqueles que, em conversas telefónicas, invocaram o seu nome.
Se, no final do processo, se vier a apurar que a António Costa nada pode ser imputado (e, a este propósito, relembro a sempre tão invocada, mas ignorada, presunção de inocência), é totalmente legítimo abrir uma discussão sobre o modelo estrutural que orienta a nossa investigação criminal. O que não podemos é aceitar que as entidades competentes não cumpram as regras a que estão adstritas (e que são definidas pelos legisladores) só porque daí podem advir consequências politicamente indesejáveis para alguns. Porque isso seria abalar as estruturas em que assenta o próprio Estado de Direito.
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