Fazer com o que é radical pareça menos extremista, ou ridicularizar o medo generalizado da Rússia, ou até mesmo corrigir a História: quando as vozes da propaganda russa falam, há várias motivações implícitas. O que leva a televisão russa a referir a desejável absorção de Lisboa na Rússia foi tarefa para os analistas consultados pelo Expresso descodificarem
“O Kremlin afirma ter o direito de defender o mundo russo, e o mundo russo existe onde quer que haja russos e falantes de russo”
“Mas Lisboa nunca foi russa.” O debate desenrola-se em sinal aberto, na televisão russa, com apresentadores e comentadores a misturarem a “desnazificação de Berlim”, que “resolveria” os problemas, com a necessidade de ter amplitude territorial “de um mar ao outro”, tal como os norte-americanos. “Para que precisamos de Lisboa?”, pergunta um interveniente. “Porque gostamos muito”, responde-lhe imediatamente outro comentador do painel. “Os portugueses continuariam a viver igualmente bem se fizessem parte do império russo”, conclui-se.
É Anton Gerashchenko, conselheiro do Ministério da Administração Interna ucraniano, que, na rede social “X”, chama a atenção para este diálogo, cujas ideias já tinham sido difundidas em pelo menos mais um programa. Noutro momento, também destacado por Gerashchenko na rede social antes conhecida como Twitter, “propagandistas russos” diziam querer fazer de Portugal uma parte integrante do Estado da União (aliança entre a Rússia e a Bielorrússia).
Apesar de as declarações carecerem de base histórica, alguns analistas compreendem as razões que levam os protagonistas da televisão russa a verbalizar tamanha ambição imperialista. “A Rússia tem historicamente sentido que a Europa lhe pertence, que é a sua esfera de influência”, explica Rashid Gabdulhakov, professor no Centro para Estudos de Média e Jornalismo da Universidade de Groningen, nos Países Baixos. Em declarações ao Expresso, o investigador adianta que, no mesmo programa, “os comentadores referem-se a Estaline, mencionando que o trabalho deveria ter sido concluído”, isto é, que, logo após a II Guerra Mundial e a vitória sobre a Alemanha nazi – da qual a Rússia colhe os louros – a União Soviética, à época, “deveria” ter tomado conta de toda a Europa. E essa não é um discurso que ressurge apenas agora. Na década de 1990, quando a antiga URSS entrou em colapso, e a Rússia começou a reconstruir-se, “Iéltsin – que agora é visto como um reformista liberal – fazia planos de ‘reinar’ na Europa”, rememora Rashid Gabdulhakov. Mantendo relações amistosas com Bill Clinton, o líder russo acabou por aceder à expansão da NATO, mas Putin reavivaria os antigos mitos.
“O que eles dizem na televisão é que os russos querem acesso ao oceano, tendo por base as velhas ideias que a Rússia é uma superpotência, que o Alasca historicamente pertenceu à Rússia. Mas, para já, querem começar pela Europa, e querem acesso ao oceano, o que significa que conquistariam toda a Europa. Então, depois da Ucrânia, iriam atrás do restante território, um país atrás do outro.” Até chegarem ao Atlântico. É uma visão que encaixa na visão de que a Federação Russa é um império e uma potência que deve reinar sobre a Europa. “São mitos que se apresentam principalmente para consumo interno, e temos de entender para quem são projetados”, sustenta o analista Rashid Gabdulhakov. Com as frases de efeito, a propaganda russa incute nas pessoas “a sensação de grandeza e o sentido de excecionalismo essas pessoas, que podem ser uma espécie de combustível, para justificar a guerra”. Por outras palavras, reforça o professor de Estudos dos Média, o que é dito é que a Rússia foi ‘forçada’ a aderir à guerra. “Há um trabalho histórico a ser concluído, e isso tem de ser comunicado ao público doméstico russo. Apesar do facto de milhões de pessoas usarem casas-de-banho externas, que praticamente se assemelham a um buraco no chão, a Rússia ainda tem algo de que se orgulhar. São as armas nucleares e o poder, e esses podem conquistar o continente europeu.”
“Aterrorizar”, para dividir o “Ocidente”
Segundo Stephen Hutchings, professor de Estudos da Rússia na Universidade de Manchester, no Reino Unido, Portugal é raramente mencionado na propaganda russa. “A base de dados de desinformação da UE enumera apenas três ocorrências, entre muitos milhares. França, em comparação, produz 194 resultados, e Grã-Bretanha, conjuntamente com o Reino Unido, cerca de 120. A Ucrânia produz 757, e os EUA, 782.” Paul A. Goble, ex-conselheiro especial do Secretário de Estado dos EUA e especialista em questões étnicas e religiosas na Eurásia, garante que algumas das ocorrências dizem respeito à “discussão em torno de Salazar e das transições pós-Salazar”. Trata-se de comentários “não elogiosos, porém, mais suaves do que os proferidos em relação ao ditador espanhol, Franco”.
Mas, pensando bem, faz algum sentido que Lisboa tenha sido recentemente integrada na lista de alvos da propaganda russa. Pelo seu posicionamento político, mais tarde ou mais cedo, era algo fadado a acontecer, sublinha Marcus Kolga, jornalista canadiano e perito em comunicação digital, bem como em questões da Rússia e da Europa Central e de Leste. “Portugal, como membro da UE e da NATO, e como nação democrática que respeita o Estado de direito e os direitos humanos, está obviamente incluído em toda a propaganda russa antiocidental e anti-NATO, quer seja explicitamente mencionado ou não. Também vale a pena observar que o site da plataforma russa de informação ‘Sputnik’ tem um serviço em português, o que indica claramente que os falantes de português são um alvo significativo para as operações de informação e influência russas.”
Alexander Motyl, professor de Ciência Política na Universidade Rutgers-Newark, nos Estados Unidos da América, e autor de várias obras sobre a Ucrânia e a Rússia, também não foi surpreendido por tais palavras, conforme confidenciou ao Expresso. “O Kremlin afirma ter o direito de defender o mundo russo, e o mundo russo existe onde quer que haja russos e falantes de russo. Esta foi a razão por trás da invasão do Donbas, em 2014. Os propagandistas da televisão russa dizem coisas ultrajantes, principalmente para aterrorizar outros países, neste caso Portugal, criando assim divisões no Ocidente.”
O perfil do apresentador
Os conteúdos veiculados no programa “Noite com Vladimir Solovyov”, no canal Rússia-1 (desde 2012), já não surpreendem Markus Kolga, que se dedica ao estudo de estratégias de comunicação como ferramentas de política externa e defesa. “Ao longo da última década, as narrativas discutidas nos programas noticiosos dos meios de comunicação estatais russos promoveram o nacionalismo radical e a xenofobia, para aumentar o apoio a Vladimir Putin e ao seu regime, que são retratados como os protetores e salvadores da Rússia.” Da receita faz parte “um fluxo regular de propaganda antiocidental, conspirações e propagação do medo”, bem como “nostalgia pelos tempos da União Soviética e pelo império russo”.
“Vladimir Solovyov é um importante apresentador de televisão russo, que faz regularmente declarações tóxicas e radicalmente nacionalistas”, analisa Markus Kolga. “No passado, ele disse, por exemplo, que a Ucrânia não está em guerra com a Rússia, mas com Deusm e sugeriu que as armas nucleares deveriam ser usadas contra as nações ocidentais. O seu papel é provocar sentimentos nacionalistas extremos entre o público, e a sua declaração sobre Lisboa deve ser vista nesse contexto.”
Vladimir Solovyev – que já viu o seu canal de YouTube bloqueado por causa de desinformação – menciona, então, a absorção da capital portuguesa na nova “união” russa, o que se “enquadra nessas narrativas mais vastas de que, se a Rússia quisesse, poderia anexar e criar um império eurasiático que fosse de Vladivostok até Lisboa”. A afirmação já tinha sido feita por Dmitry Medvedev, secretário-geral do Conselho de Segurança russo.
Expor o “ridículo” do medo da Rússia
Também Stephen Hutchings defende que a “proposta” não deva ser levada a sério. “Não é essa a intenção”, diz o investigador, que também analisa a televisão e o cinema russos e soviéticos, e a sua literatura. “Os propagandistas presentes na discussão adotaram uma retórica cada vez mais provocativa e deliberadamente ultrajante, que exagera e leva a novos extremos a narrativa oficial antiocidental, que é real, mas muito mais racional e credível do que declarações deste tipo.”
Ideias como a extensão do império russo até Portugal são, por isso, “uma forma específica de humor satírico e pró-Kremlin”, assegura o investigador. “Este tipo de humor é o desenvolvimento e conclusão – absurda – daquilo que o Kremlin regularmente, e muito seriamente, retrata como ‘russofobia’ ocidental [ a ideia de que a Rússia é a culpada por todos os problemas do mundo e tem a intenção de conquistá-lo na sua totalidade] . A teoria implícita é de que a natureza ridícula de tais medos fica assim exposta.”
Ao mesmo tempo, o fator da ridicularização é misturado com uma “aspiração genuína do Kremlin de alargar a influência russa no estrangeiro, de desafiar abertamente as sanções ocidentais e as ameaças de represálias, e de aumentar as fronteiras territoriais da Rússia para incluir a Ucrânia, bem como algumas outras partes do antigo império soviético, como Moldova, Bielorrússia e até partes do Cazaquistão”, admite Hutchings. O resultado geral é, portanto, um cocktail de exagero cómico e agressão desafiadora e antiocidental, que “cai bem junto o público ultrapatriótico e sensacionalista, que estes programas têm como alvo”.
Paul A. Goble desmascara ainda uma estratégia oculta dos comentadores: “Querem claramente expressar uma opinião, mas fazem-no de uma forma grosseira, de que a Rússia, e não o Ocidente, deveria dominar Portugal e todos os outros países da Europa. E fazem-no por duas razões: para parecerem provocadores, e assim ganharem ouvintes, e para prepararem o terreno para que outros possam dizer coisas menos radicais e, assim, parecerem moderados, quando, na verdade, estão a ser radicais.”
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